GUEDES DE AMORIM
(No centenário do seu nascimento)
Autor de numerosos romances, novelas, contos e crónicas de cariz social, António Guedes de Amorim nasceu a 26 de Outubro de 1901, na aldeia de Sedielos, situada nas faldas da serra do Marão, concelho do Peso da Régua.
Guedes de Amorim fez os estudos primários na vizinha freguesia de Godim, para logo de seguida se empregar no comércio. No Porto, para onde foi aos 16 anos, trabalhou no mesmo ramo, começando a escrever pequenos artigos para o "Jornal de Notícias" e a revista "Civilização". Mais tarde vai para Lisboa onde inicia a sua carreira de jornalista no célebre diário " O Século" , notabilizando-se como cronista e repórter.
"Aldeia das Águias", prémio Ricardo Malheiros da Academia das Ciências de Lisboa," "O Homem da Rua", "Casa de Judas", "Escravos da Morte", "A Cidade e o Sonho", "A Máscara e o Destino" são algumas obras da primeira fase deste escritor.
EM BUSCA DE UM IDEAL
Perdido na grande cidade, Guedes de Amorim abraça o ideal marxista-leninista, como ele próprio confessa:
"Envelheciam as instituições, via-se e sabia-se... Aderimos àqueles que declaravam e sustentavam - não com forte poder de convicção, mas, sem dúvida, soltando temerosos berros e ameaças - que era premente tudo destruir, para reconstruir de novo...Tomando a dianteira de muitos, clamou-se, até, que era preciso levantar um mundo novo, ainda que fosse sobre rios de sangue e montanhas de cadáveres!"
Jornalista inteligente, íntegro, honesto no trabalho e na vida, veio a reconhecer, na idade madura, que o caminho do marxismo que abraçara com tanto fervor, não conduzia a Humanidade para a verdadeira revolução que se impunha:
"Contudo, não demorámos a reconhecer ( e com mágoa que se foi avolumando e nos doía como desengano em carne viva) que, de quantos preconizavam a renovação, revolucionária (com emblema de bater e ceifar), poucos eram os que não levavam máscara! Tais fabricantes de felicidade dialética remavam, e com descaro, para aquele outro mundo condenado, à medida que, para os seus bolsos e estômagos, redirigiam a abastança ou as normais satisfações que para os outros desejavam almejar... Mais cedo do que se poderia supor, teríamos de concluir definitivamente que a felicidade material, na colectividade, por que se almejava, não podia nunca satisfazer integralmente o Homem."
O VERDADEIRO HUMANISMO
Se, para Guedes de Amorim, a mudança de rumo não é súbita como a de Paulo no caminho de Damasco, mas reflectida, amadurecida e ponderada, já o modo como tudo aconteceu nos traz à lembrança um episódio semelhante que Santo Agostinho nos relata nas suas célebres "Confissões": a leitura inesperada da Carta aos Coríntios.
"...Fugindo da tempestade, nas primeiras sombras do anoitecer, escapando da chuva que, subitamente, alagava a cidade, entrámos num alfarrabista. Queria-se resguardo, não se levava a intenção de comprar um livro..."
Entretanto, enquanto a chuva caía, os olhos de Guedes de Amorim percorriam as centenas de volumes empilhados nas velhas prateleiras.
"Inesperadamente, ele mesmo, pedindo para ver o livro que espreitava do bolso esbeiçado do meu casaco, sugeriu, lentamente, uma troca...Ficaria, pois, o nosso volume e levaríamos, se quiséssemos, um outro que não deixasse na casa prejuízo. Ora, quando íamos indicar, das três obras, a que mais nos prendia, o homenzito declarou, secamente, que nenhuma delas poderia descer , em preço, àquela que mostráramos, e que era, justamente, "O Capital"...
Depois de várias propostas de um lado e do outro, desabafa:
"Gorava-se a permuta...Veio-me a vontade de insultá-lo...Por último, sem disfarçar o aborrecimento provocado pelas minhas exigências ( e com picardia, talvez ), pôs-me na frente um velho e pequeno volume. Li o título: "Florinhas do glorioso São Francisco e seus frades"...
" - Pertenceu a um recluso da Penitenciária, oferecido por um padre que costumava visitar os presos...- informou o alfarrabista...Veio para aí, há meses, como tantas outras tretas. Pode ver: tem a dedicatória do tal padre".
Sorri-me com irreprimível sobranceria. Peguei no livro, o primeiro sobre o "Poverello" que tive nas mãos...Como a chuva nesse momento abrandasse, e, carregado de tédio, eu me sentisse com mais urgência de silêncio que de palavras, aproveitei aquela aberta, aceitando, sem mais, a troca."
DE MARXISTA... A FRANCISCANO
.
Uma vez no seu tugúrio de homem desprendido e solitário, abre as "Florinhas" e lê algumas páginas. Vem o sono e põe o livro de parte...
"Após sono breve, chegou a insónia, esta minha insónia já hoje velha de muitos anos...
Como viessem longe o dia e o sono, decidi-me a reatar a leitura de "Florinhas", mas com a fadiga antecipada de quem vai para um aborrecimento que não se pode evitar. Queria provar, ainda, que a certeza estava do meu lado...Porém, com espanto meu, eu ia sendo, agora, penetrado, direi, levado por ondas de poesia e abraços de serenidade. Tinha atravessado uma fronteira, a partir de dentro de mim, a partir da infância revivida, em que, misteriosamente, me afeiçoara a S. Francisco. Apercebi-me, sobre a leitura, que, com essas raízes fundas, só aparentemente esquecidas, eu tinha encontrado um novo caminho, que me dava outra, completa e definitiva dimensão do Homem. Seria possível? Ao ver chegar o tímido sol, através dos vidros empoeirados da janela, revitalizava-me a impressão de ter encontrado, na época do catolicismo vazio, o mais humano dos homens e o mais activo socialista de todos os tempos. Seria possível?"
Enamorado de Francisco de Assis, Guedes de Amorim dedica-se ao estudo da sociedade medieval, parte para a Itália onde faz aturado estudo e investigação sobre a vida e a acção do "Poverello", viaja demoradamente pela Palestina, e escreve então as obras que verdadeiramente o consagram como escritor em Portugal e no estrangeiro.
São desta segunda fase do grande jornalista e escritor a biografia histórica "Francisco de Assis Renovador da Humanidade" que recebeu os mais rasgados elogios da crítica portuguesa e estrangeira, e "Jesus Passou por Aqui", galardoado com um dos prémios mais prestigiados do Brasil - o prémio Cervantes. Para além destas, publicou ainda "Colunas da Terra Santa" e o romance "O Céu não está Fechado".
Guedes de Amorim entrou para a Ordem Terceira de S. Francisco, e, pelos seus estudos sobre esta Ordem, recebeu o título de Membro Oficial da Sociedade Internacional de Estudos Franciscanos.
Tal como Guerra Junqueiro, Guedes de Amorim pediu que fosse amortalhado com o hábito de S. Francisco.
I
Nada conheço da eterna duração das coisas
- Ser humano não é ser deus - ,
Apenas reconheço nelas a terna duração do sentir
II
As coisas têm a complexidade que têm
E nada mais.
Tudo o resto são ilusões e fixações
Em desejos de sempre e para sempre proibidos
III
Talvez que não dure para sempre.
Mas que me importa que não dure,
Se enquanto me durar no sentir
O sentir intensamente
Como se durando eternamente?
por Amorim de Carvalho
Guedes de Amorim fez os estudos primários na vizinha freguesia de Godim, para logo de seguida se empregar no comércio. No Porto, para onde foi aos 16 anos, trabalhou no mesmo ramo, começando a escrever pequenos artigos para o "Jornal de Notícias" e a revista "Civilização". Mais tarde vai para Lisboa onde inicia a sua carreira de jornalista no célebre diário " O Século" , notabilizando-se como cronista e repórter.
"Aldeia das Águias", prémio Ricardo Malheiros da Academia das Ciências de Lisboa," "O Homem da Rua", "Casa de Judas", "Escravos da Morte", "A Cidade e o Sonho", "A Máscara e o Destino" são algumas obras da primeira fase deste escritor.
EM BUSCA DE UM IDEAL
Perdido na grande cidade, Guedes de Amorim abraça o ideal marxista-leninista, como ele próprio confessa:
"Envelheciam as instituições, via-se e sabia-se... Aderimos àqueles que declaravam e sustentavam - não com forte poder de convicção, mas, sem dúvida, soltando temerosos berros e ameaças - que era premente tudo destruir, para reconstruir de novo...Tomando a dianteira de muitos, clamou-se, até, que era preciso levantar um mundo novo, ainda que fosse sobre rios de sangue e montanhas de cadáveres!"
Jornalista inteligente, íntegro, honesto no trabalho e na vida, veio a reconhecer, na idade madura, que o caminho do marxismo que abraçara com tanto fervor, não conduzia a Humanidade para a verdadeira revolução que se impunha:
"Contudo, não demorámos a reconhecer ( e com mágoa que se foi avolumando e nos doía como desengano em carne viva) que, de quantos preconizavam a renovação, revolucionária (com emblema de bater e ceifar), poucos eram os que não levavam máscara! Tais fabricantes de felicidade dialética remavam, e com descaro, para aquele outro mundo condenado, à medida que, para os seus bolsos e estômagos, redirigiam a abastança ou as normais satisfações que para os outros desejavam almejar... Mais cedo do que se poderia supor, teríamos de concluir definitivamente que a felicidade material, na colectividade, por que se almejava, não podia nunca satisfazer integralmente o Homem."
O VERDADEIRO HUMANISMO
Se, para Guedes de Amorim, a mudança de rumo não é súbita como a de Paulo no caminho de Damasco, mas reflectida, amadurecida e ponderada, já o modo como tudo aconteceu nos traz à lembrança um episódio semelhante que Santo Agostinho nos relata nas suas célebres "Confissões": a leitura inesperada da Carta aos Coríntios.
"...Fugindo da tempestade, nas primeiras sombras do anoitecer, escapando da chuva que, subitamente, alagava a cidade, entrámos num alfarrabista. Queria-se resguardo, não se levava a intenção de comprar um livro..."
Entretanto, enquanto a chuva caía, os olhos de Guedes de Amorim percorriam as centenas de volumes empilhados nas velhas prateleiras.
"Inesperadamente, ele mesmo, pedindo para ver o livro que espreitava do bolso esbeiçado do meu casaco, sugeriu, lentamente, uma troca...Ficaria, pois, o nosso volume e levaríamos, se quiséssemos, um outro que não deixasse na casa prejuízo. Ora, quando íamos indicar, das três obras, a que mais nos prendia, o homenzito declarou, secamente, que nenhuma delas poderia descer , em preço, àquela que mostráramos, e que era, justamente, "O Capital"...
Depois de várias propostas de um lado e do outro, desabafa:
"Gorava-se a permuta...Veio-me a vontade de insultá-lo...Por último, sem disfarçar o aborrecimento provocado pelas minhas exigências ( e com picardia, talvez ), pôs-me na frente um velho e pequeno volume. Li o título: "Florinhas do glorioso São Francisco e seus frades"...
" - Pertenceu a um recluso da Penitenciária, oferecido por um padre que costumava visitar os presos...- informou o alfarrabista...Veio para aí, há meses, como tantas outras tretas. Pode ver: tem a dedicatória do tal padre".
Sorri-me com irreprimível sobranceria. Peguei no livro, o primeiro sobre o "Poverello" que tive nas mãos...Como a chuva nesse momento abrandasse, e, carregado de tédio, eu me sentisse com mais urgência de silêncio que de palavras, aproveitei aquela aberta, aceitando, sem mais, a troca."
DE MARXISTA... A FRANCISCANO
.
Uma vez no seu tugúrio de homem desprendido e solitário, abre as "Florinhas" e lê algumas páginas. Vem o sono e põe o livro de parte...
"Após sono breve, chegou a insónia, esta minha insónia já hoje velha de muitos anos...
Como viessem longe o dia e o sono, decidi-me a reatar a leitura de "Florinhas", mas com a fadiga antecipada de quem vai para um aborrecimento que não se pode evitar. Queria provar, ainda, que a certeza estava do meu lado...Porém, com espanto meu, eu ia sendo, agora, penetrado, direi, levado por ondas de poesia e abraços de serenidade. Tinha atravessado uma fronteira, a partir de dentro de mim, a partir da infância revivida, em que, misteriosamente, me afeiçoara a S. Francisco. Apercebi-me, sobre a leitura, que, com essas raízes fundas, só aparentemente esquecidas, eu tinha encontrado um novo caminho, que me dava outra, completa e definitiva dimensão do Homem. Seria possível? Ao ver chegar o tímido sol, através dos vidros empoeirados da janela, revitalizava-me a impressão de ter encontrado, na época do catolicismo vazio, o mais humano dos homens e o mais activo socialista de todos os tempos. Seria possível?"
Enamorado de Francisco de Assis, Guedes de Amorim dedica-se ao estudo da sociedade medieval, parte para a Itália onde faz aturado estudo e investigação sobre a vida e a acção do "Poverello", viaja demoradamente pela Palestina, e escreve então as obras que verdadeiramente o consagram como escritor em Portugal e no estrangeiro.
São desta segunda fase do grande jornalista e escritor a biografia histórica "Francisco de Assis Renovador da Humanidade" que recebeu os mais rasgados elogios da crítica portuguesa e estrangeira, e "Jesus Passou por Aqui", galardoado com um dos prémios mais prestigiados do Brasil - o prémio Cervantes. Para além destas, publicou ainda "Colunas da Terra Santa" e o romance "O Céu não está Fechado".
Guedes de Amorim entrou para a Ordem Terceira de S. Francisco, e, pelos seus estudos sobre esta Ordem, recebeu o título de Membro Oficial da Sociedade Internacional de Estudos Franciscanos.
Tal como Guerra Junqueiro, Guedes de Amorim pediu que fosse amortalhado com o hábito de S. Francisco.
I
Nada conheço da eterna duração das coisas
- Ser humano não é ser deus - ,
Apenas reconheço nelas a terna duração do sentir
II
As coisas têm a complexidade que têm
E nada mais.
Tudo o resto são ilusões e fixações
Em desejos de sempre e para sempre proibidos
III
Talvez que não dure para sempre.
Mas que me importa que não dure,
Se enquanto me durar no sentir
O sentir intensamente
Como se durando eternamente?
por Amorim de Carvalho