Guedes de Amorim "In Memoriam"
Reza o assento de baptismo que António Guedes de Amorim nasceu às 3 horas do dia 26 de Outubro de 1901no lugar de Sá, em Sedielos, concelho do Peso da Régua.
Foi o primeiro filho do casal de Miguel Guedes de Amorim e mulher Maria Rosa, tendo sido baptizado, solenemente, pelo padre José Pinto da Fonseca na igreja de Santa Maria de Sedielos a 3 de Novembro seguinte. Nos trinta anos da sua morte (pois faleceu a 10.3.1979), o Pelouro da Cultura da Câmara Municipal do Peso da Régua, com a colaboração da Rádio Clube de Armamar, organizou uma evocação deste escritor e jornalista na primeira sessão de “Conversas à Quinta”. Vou alinhar umas breves notas, sobre este ilustríssimo filho da Régua. Guedes de Amorim foi uma autodidacta. Primeiramente instruiu-se por si próprio e depois foi-se construindo no jornalismo. Subiu a corda da vida a pulso, foi um self-made man. Louvo o homem de letras com uma insuperável capacidade de trabalho, face aos compromissos jornalísticos assumidos, a par do exercício da actividade literária, propriamente dita. Deu outra lição de vida não menos valiosa: a amizade, a lealdade e a generosidade que sempre dedicou aos colegas das letras. Os seus romances, novelas, contos e peças de teatro afinam, predominantemente, pelos cânones do neo-realismo, mostrando séria preocupação com os necessitados e denunciando as injustiças sociais. Foi ainda mestre na caracterização psicológica dos personagens. Escreveu também impressões de viagens, biografias e hagiografias. Era um livre-pensador e simpatizava com o marxismo, que foi a matriz ideológica dos neo-realistas. Mas, a obra “Francisco de Assis, Renovador da Humanidade”, que publicou em 1960, marca a evolução do seu pensamento marxista para o espiritualismo franciscano. No ano de 1960 recebeu até o hábito e o cordão de terceiro franciscano. Abandonou então a ficção romanesca e passou a viver no mais puro misticismo.
Os seus livros foram traduzidos para diversas línguas. Foi distinguido com o Prémio Ricardo Malheiros da Academia das Ciências de Lisboa pelo romance “Aldeia das Águias” em 1939 e com o Prémio Cervantes do Pen Clube do Brasil pelo seu “Jesus Passou Por Aqui” em 1964.
A sua vastíssima obra jornalística e literária, alicerçada na inquietação com a pobreza e o sofrimento, tem um rasto luminoso que lhe dá o passaporte para se juntar à dos “que se vão, da lei da morte, libertando”.
Agora dou a palavra a Guedes de Amorim transcrevendo uma passagem deliciosa da entrevista que concedeu a Lopes de Oliveira, por volta de 1950:
“Lopes de Oliveira: - Pode contar-me qualquer episódio original que ande ligado à sua vida de escritor?
Guedes de Amorim: - Não compreendo a sua pergunta.
Lopes de Oliveira: - Quero dizer se pode revelar algum episódio de interesse que tenha ligação com a sua maneira de escrever para o público.
Guedes de Amorim: - Olhe, sucedeu-me há dois anos o seguinte: um homem de Coimbra, velhinho simpático e asseado, apareceu-me aqui, no «Século Ilustrado», ferido de aflição e banhado em lágrimas. Tinha uma neta, estudante do liceu naquela cidade… O velho, que trazia uma carta de apresentação dum meu camarada, contou-me o que o atormentava. A neta era muito inteligente e voluntariosa. O avô era o seu tutor. Educava-a à moda do seu tempo, com austeridade e respeito. Ora a pequena, fatigada de se ver massacrada de preconceitos e censuras, resolveu conquistar a liberdade: fugiu de casa. Veio para Lisboa. Aqui, instalou-se em casa duns vagos parentes. O avô correu a pedir-lhe que voltasse para sua casa, mas ela negou-se. Fez mais: fugiu para junto dumas amigas, vivendo dumas jóias que tinham sido da mãe. Parece-lhe novela, isto? É a realidade. Os escritores nada ensinam à vida, já se sabe. O velho não podia passar sem a neta. Esta não queria voltar a viver com o avô. Então, por indicação amiga, veio ele pedir-me que escrevesse um conto à volta desse pequeno grande drama. Fiquei muito surpreendido, como calcula. Que resultados esperava disso o bom homem? Esperava que a rapariga lesse o conto, se comovesse e voltasse a Coimbra. Acedi, mas sem confiança nenhuma no remédio. Recriei o assunto, com o fio real das razões e sofrimentos dum e doutro, tirando a conclusão de que a felicidade da nossa vida não deve custar nunca o sofrimento da vida alheia. O conto saíu, e, contra o que eu esperava, deu bom resultado: a pequena comoveu-se e voltou para junto do avô.”
Eis um impressionante testemunho do humanista a ressumar amor ao próximo. Apesar de a Régua não ter esquecido este fecundo Escritor (pois o elegeu como patrono duma rua e já lhe prestou homenagens) tem de considerá-lo como uma referência do seu património cultural. Só lendo os seus livros é possível apreciá-lo, estudá-lo e valorizá-lo. Urge passar das palavras aos actos, promovendo e facilitando a leitura das obras mais significativas. Muitas delas, como é sabido, são repositórios da memória das gentes da Régua e da região do Douro.
Se “os escritores nada ensinam à vida” como lembrou Guedes de Amorim, a literatura pode fazer milagres!
Peso da Régua, 24 de Janeiro de 2009 - Notícias do Douro
Por M. J. Martins de Freitas, Dr.
Foi o primeiro filho do casal de Miguel Guedes de Amorim e mulher Maria Rosa, tendo sido baptizado, solenemente, pelo padre José Pinto da Fonseca na igreja de Santa Maria de Sedielos a 3 de Novembro seguinte. Nos trinta anos da sua morte (pois faleceu a 10.3.1979), o Pelouro da Cultura da Câmara Municipal do Peso da Régua, com a colaboração da Rádio Clube de Armamar, organizou uma evocação deste escritor e jornalista na primeira sessão de “Conversas à Quinta”. Vou alinhar umas breves notas, sobre este ilustríssimo filho da Régua. Guedes de Amorim foi uma autodidacta. Primeiramente instruiu-se por si próprio e depois foi-se construindo no jornalismo. Subiu a corda da vida a pulso, foi um self-made man. Louvo o homem de letras com uma insuperável capacidade de trabalho, face aos compromissos jornalísticos assumidos, a par do exercício da actividade literária, propriamente dita. Deu outra lição de vida não menos valiosa: a amizade, a lealdade e a generosidade que sempre dedicou aos colegas das letras. Os seus romances, novelas, contos e peças de teatro afinam, predominantemente, pelos cânones do neo-realismo, mostrando séria preocupação com os necessitados e denunciando as injustiças sociais. Foi ainda mestre na caracterização psicológica dos personagens. Escreveu também impressões de viagens, biografias e hagiografias. Era um livre-pensador e simpatizava com o marxismo, que foi a matriz ideológica dos neo-realistas. Mas, a obra “Francisco de Assis, Renovador da Humanidade”, que publicou em 1960, marca a evolução do seu pensamento marxista para o espiritualismo franciscano. No ano de 1960 recebeu até o hábito e o cordão de terceiro franciscano. Abandonou então a ficção romanesca e passou a viver no mais puro misticismo.
Os seus livros foram traduzidos para diversas línguas. Foi distinguido com o Prémio Ricardo Malheiros da Academia das Ciências de Lisboa pelo romance “Aldeia das Águias” em 1939 e com o Prémio Cervantes do Pen Clube do Brasil pelo seu “Jesus Passou Por Aqui” em 1964.
A sua vastíssima obra jornalística e literária, alicerçada na inquietação com a pobreza e o sofrimento, tem um rasto luminoso que lhe dá o passaporte para se juntar à dos “que se vão, da lei da morte, libertando”.
Agora dou a palavra a Guedes de Amorim transcrevendo uma passagem deliciosa da entrevista que concedeu a Lopes de Oliveira, por volta de 1950:
“Lopes de Oliveira: - Pode contar-me qualquer episódio original que ande ligado à sua vida de escritor?
Guedes de Amorim: - Não compreendo a sua pergunta.
Lopes de Oliveira: - Quero dizer se pode revelar algum episódio de interesse que tenha ligação com a sua maneira de escrever para o público.
Guedes de Amorim: - Olhe, sucedeu-me há dois anos o seguinte: um homem de Coimbra, velhinho simpático e asseado, apareceu-me aqui, no «Século Ilustrado», ferido de aflição e banhado em lágrimas. Tinha uma neta, estudante do liceu naquela cidade… O velho, que trazia uma carta de apresentação dum meu camarada, contou-me o que o atormentava. A neta era muito inteligente e voluntariosa. O avô era o seu tutor. Educava-a à moda do seu tempo, com austeridade e respeito. Ora a pequena, fatigada de se ver massacrada de preconceitos e censuras, resolveu conquistar a liberdade: fugiu de casa. Veio para Lisboa. Aqui, instalou-se em casa duns vagos parentes. O avô correu a pedir-lhe que voltasse para sua casa, mas ela negou-se. Fez mais: fugiu para junto dumas amigas, vivendo dumas jóias que tinham sido da mãe. Parece-lhe novela, isto? É a realidade. Os escritores nada ensinam à vida, já se sabe. O velho não podia passar sem a neta. Esta não queria voltar a viver com o avô. Então, por indicação amiga, veio ele pedir-me que escrevesse um conto à volta desse pequeno grande drama. Fiquei muito surpreendido, como calcula. Que resultados esperava disso o bom homem? Esperava que a rapariga lesse o conto, se comovesse e voltasse a Coimbra. Acedi, mas sem confiança nenhuma no remédio. Recriei o assunto, com o fio real das razões e sofrimentos dum e doutro, tirando a conclusão de que a felicidade da nossa vida não deve custar nunca o sofrimento da vida alheia. O conto saíu, e, contra o que eu esperava, deu bom resultado: a pequena comoveu-se e voltou para junto do avô.”
Eis um impressionante testemunho do humanista a ressumar amor ao próximo. Apesar de a Régua não ter esquecido este fecundo Escritor (pois o elegeu como patrono duma rua e já lhe prestou homenagens) tem de considerá-lo como uma referência do seu património cultural. Só lendo os seus livros é possível apreciá-lo, estudá-lo e valorizá-lo. Urge passar das palavras aos actos, promovendo e facilitando a leitura das obras mais significativas. Muitas delas, como é sabido, são repositórios da memória das gentes da Régua e da região do Douro.
Se “os escritores nada ensinam à vida” como lembrou Guedes de Amorim, a literatura pode fazer milagres!
Peso da Régua, 24 de Janeiro de 2009 - Notícias do Douro
Por M. J. Martins de Freitas, Dr.