AMORIM, António Guedes de
AMORIM, António Guedes de Cf. Dicionário dos mais Ilustres Transmontanos, Vol. I, pp. 48 49. Aditamento: o 1° centenário do seu nascimento (2001) decorreu, segundo julgamos saber, como se nada se comemorasse. Em homenagem à sua grande figura de novelista, ousamos solicitar ao poeta Barroso da Fonte, que inclua este nosso estudo, há muitos anos publicado, estudo esse que procurou abranger a obra do ficcionista ("Perspectiva da Obra de Guedes de Amorim", in revista de Gil Vicente, 2ª série, Vol. XIII, n°s 3/4, Guimarães, 1962, pp. 44 45): Perspectiva da Obra de Guedes de Amorim A quem o observe nas primeiras manifestações literárias publicadas em livro, Guedes de Amorim semelhará projectar se numa íntima conexão reflexa com os ambientes em que vivia: o jornalismo e a dispersão reportérica dão lhe, ao tempo da flexibilidade espiritual, da heteronomia visual, uma possessão de casos e de eventos que, se não o atraiçoam na sua essência, o desviam para um ângulo de preocupações diferentes das que deviam ter sido as normais. Por outras palavras: o jovem Guedes de Amorim mergulha de cabeça na cidade, respira a, absorve a e é absorvido? A cidade tentacula o em sucessos de resultado sinalizador e, em vez de ser a saudade ou a ausência presente aldeã a olhar a cidade, é mesmo a cidade que se torna o motivo artístico fundamental: os ambientes nocturnos, a música, tantas vezes presentes na sua obra, o mórbido e o corrosivo assoberbam se num ouropel de atracção e de sugestividade a que Guedes de Amorim não se nega porque, embalado na miragem superficial e sensorial, logrou conhecer o que só a poucos era revelado. Não fosse a sensação percepcionada e outras teriam sido ganâncias... Mas... percebidas que foram ocorrências, ambientes, personagens, significados e significáveis, o artista logrou o filão, subindo a uma quase loucura sensacionalista, isto é, aonde o sensacional é o objecto da pormenorizada reportagem feita pelo escritor. Curioso não é se atendermos a que, nesse tempo, muitos outros escritores que seria moroso citar. se dedicavam a esse género de temáticas, que só assumiram real interesse literário quando tais escritores interiorizaram o exterior e lhe deram um sentido. Guedes de Amorim está também nesse lugar: sentido do assunto, captabilidade do pormenor salientável, intuição narrativa, só o estilo é breve e, evidentemente. adaptado à exnanimidade dos temas. A Bailarina Negra, Morfina, são dois exemplos concretos e exemplares do género reportérico ao modo realista desinteressado: reportagens nar??? Sombrios e mórbidos. Charles Oulmont e Palácio Valdez são entre julgo leituras de Guedes de Amorim que, num ponto ou noutro, denota andar relendo em meditação Júlio Diniz, Camilo e todo o exacerbado romantismo mortuário. A cidade estereotipa se nos casos da vida diária descrita por Guedes de Amorim para quem a cidade foi uma fase, uma aventura necessária que se tornaria memória. Necessária a outro Guedes de Amorim mais profundo e com sentido, diferente do primeiro que de tal modo frui das veleidades citadinas que não podemos falar numa presença social nas suas primeiras obras. Quiçá em 1945 os contos de Patamar venham trazer alguma notícia das suas simpatias pelo social, até porque sou levado a crer que tais contos foram uma experiência observada e coeva de A Bailarina Negra. As características psicológicas das pessoas desaparecem perante a palavra das relações exteriores, causas ou efeitos das partes entrechantes. E a nota social esboça se num odor de racismo que não éainda posto como problema mas apenas como nota fricativa ou sibilante que valorizou o entrecho dramático de um amor incestuoso. A esquematização ornamental do racismo reflecte se, aliás, em toda a obra, até em componentes desiguais, desde os cenários às pessoas que só ocupam o lugar capaz de entregar à historieta verdadeira importância. Seria conveniente chamar a atenção, no entanto, para um pormenor: O suicídio aqui presente aparecerá como dilema ou como fecho necessário? Eis que não sei responder, pois, se por um lado ele diz alguma coisa em relação à futura obra de Amorim, por outro está na novela como macabra e tão profundamente embuída nas necessidades das histórias que as suas características problemáticas não se anunciam suficientemente. A importância na categoria sócio espiritual é lhe conferida, todavia, pela morte final assassínio ocorrida em Morfina. Presença angustiante, futuramente, a morte é, aqui, alumbre necessário ao ferimento da susceptibilidade e só importante como achega ao estudo da tipologia substancial da obra do Guedes de Amorim post quarenta. Percussão, procura, engano, aflição, perguntação, encontro, com a vida! Guedes de Amorim tem, como criador de pessoas, incarnando desastres existenciais, nas suas primeiras novelas, escritas em anos de juventude ardente em solicitadores fogos, uma fase aventureira. Como aventura valem, sim, embora o escritor com função não estivesse lá. Maior profundidade o esperava e, acabadas as milhentas solicitações espirituais, ao menos sistematizadas, lançada que foi a alma num rumo, o artista conheceu se e revelou se. O jovem novelista do mórbido dera lugar a um novelista em procura especulativa do Homem integral... Aldeia das Águias marca uma diametral reviravolta na temática e ainda mais na mundividência do escritor Guedes de Amorim. Todas as virtudes fazem o artista nele de tal modo se aperfeiçoam que nos seria possível falar num Guedes de Amorim anterior a 1939 e noutro Guedes de Amorim, o posterior. Enfaticamente mundanas e mundanistas, as obras escritas até esse ano, embora possuam já certas qualidades que vieram a permanecer, elas como que morrem, absorvidas na demarcatória entre o presente e o passado. Os temas, o estilo, os problemas, o medo de estar no mundo, purificam se e transplantam se, melhor: Guedes de Amorim derrota para outro rumo e, do anterior, apenas herda a vocação literária. Mesmo a envergadura do romance intitulado Aldeia das Águias sugere um aprofundamento complexo, porque total, em várias direcções que foram o justo resultado da demanda. Estas observações, comprovadas depois na sua biografia sobre o Santo de Assis, levam me a concluir, ainda que hipoteticamente, que a aparição proporcionada a Guedes de Amorim, criatura de Deus, foi igualmente um tufão que ordenou a sua personagem artística. Certo as obras anteriores corresponderem a um tempo menos maduro porque mais juvenil; todavia, devemos recordar que a mudança não foi excessivamente lenta. A mudança foi verdadeira revolução. Revolução no que a palavra tem de ideia força: mudar precipitadamente e no que a palavra vale etimologicamente: retorno. Guedes de Amorim, o escritor de ambientes citadinos e mórbidos volta à serra e, regressando, procura reincarnar a infância cuja saudade foi uma das causas remotas da sua progressão Descrença Deus, cujo termo intermédio São Francisco de Assis, desempenhou. "... A promessa de que os homens receberiam, em abastança, a paga das suas ardentes canseiras" assim termina, num gesto de esperança profética, Aldeia das Águias. A esperança é o sinal que orienta a obra desde o inicio, posto que as circunstâncias vitais obriguem ao desfasamento individual. Romance de afinidades pedagógicas implícitas ou final jacentes, Aldeia das Águias é problematicamente rico. A visão de Guedes de Amorim volta se para as serras e, aí, no solar de uma família nobre, num pequeno mundo de seres e haveres inter relaciona interesses, psicologias e circunstâncias num fio intriguesco bem urdido, numa planificação e numa sequência que são planas e são rítmicas e criam a atmosfera de sigilo própria de qualquer intriga. Esta não é, como as minhas palavras o podem pretender, o elemento fundamental da obra; direi, até, que ela é apenas um molde necessário que a fatalidade transforma nos sucessivos encadeamentos de causa efeito. Logo, nós vemos que sem tal encadeamento o problema apresentado deixaria de ser menos eticamente criticável e as interferências tiradas pelo romancista bem demonstram que são os homens, sobretudo, a criar os ambientes e a criarem os sentidos. A família tem um lugar preponderante como célula social, a colectividade e a massa que foram os torpedos neo realistas são substituídos pelo escol social, restrito, a família, âmbito onde mais facilmente e concretamente o social se gera nos defeitos e virtudes, imanências e transimanências. Por isso, romance que não assume, ad verbum, uma posição ética (não se torna preciso falar do realismo que enforma a obra de Amorim), ele prolonga se na ética ou discute a dialecticamente. conquanto mais afectiva que racionalmente. E porque é nitida a oposição cidade aldeia` Afinal, éessa oposição irmanada o tema central, pelo menos mais central. do romance. Seria loucura aplicar um método histórico na destrinça da questão. Bem se torna que (a obra artística expressa a psicologia do seu autor) a cidade não foi um caminho para Guedes de Amorim. Foi a fase ecologicamente vivida de um percurso que substancialmente desejava atingir: o início, a pureza original, a criança, motivos tão presentes em Aldeia das Águias num contraste com a morte (natural e suicida), que é uma avassaladora presença, quantas vezes catártica, na sua obra. Máscaras emocionais que Amorim usou na transfiguração do realquotidiano e pessoal que é a arte? Suponho bem que sim e estas perguntas ouso fazê las sempre que Guedes de Amorico se me impõe: Até que ponto a saudade de infância foi uma causa da derivação? Até que ponto a ideia morta não constitui, mais que a saudade infantilesca, a outra causa, a que lançou o pânico sobrevivencial na alma do homem que arrastou consigo o Artista? Só Guedes de Amorico o sabe mas, se a arte não mente, mesmo tendo em linha de conta a "maquillage", somos levados a aceitar a ideia da luta travada no seu espírito entre os limites opostos: a morte e o início. Por outras palavras simbólicas: o pecado e a inocência que sempre degeneraram em tragédia cemiterial neste romance, bem como noutras obras de Guedes de Amorim. O estilo adapta se ao tema e. uma vez mais, me foi dado comprovar que o ficcionista não deve procurar um estilo único mas deve encontrar a forma e a palavra mais adequadas a cada tema. A Bailarina Negra, nas roupagens de Aldeia das Águias, seria um títere. Agora, um romance que cheira a terra. a morte, a primavera, a luta, só uma linguagem viril, realista, linear mas sonicamente adusta se podia encontrar. A construção sintática moderna dá ao estilo a linearidade, o poder de expressão dá lhe ressonância notável a ponto de termos a sensação das falas; o estilo de Guedes de Amorim que narra na terceira pessoa omnisciente, ganha incontestável relevo o que é de realçar numa obra que, sendo Realmente a primeira, se mostra técnica, substancial e formalmente conseguida. O "flash" jornalístico anterior desaparece e os grandes planos, numa diversidade poliforme inculcam se de modo que Aldeia das Águias é possível, verosímil e real. A esperança, mesmo quando se morre eis a águia que arranca voo e parte e logo volta. Que a metáfora serve perfeitamente neste lugar: Vilarinho voltou do Porto em carne e osso; Guedes de Amorim voltou com a sua alma... Quantas vezes acontece serem os temas secundários de um romance os temas centrais de obras posteriores? Assim vemos que alguns deles epidermicamente roçadas em Aldeia das Águias, em Escravos da Morte são esculpidos, aformoseados, definidos e a focagem é feita integralmente. A morte, que fora nesse primeiro grande romance de Guedes de Amorico o motivo reptício e porventura o leit maior dos leits menores adveio (possivelmente por impossibilidade de fuga a uma força que se impôs avassaladoramente ao autor), o único leit com existência nas novelas que G. de A. reuniu em Escravos da Morte. Disse único e penso ter dito bem. Todas as novelas expõem a Morte, narrando prelúdios de morte: os prelúdios são as histórias que se desenrolam , obedientes a forças que existem (o Homem chamaIhes destino para evitar o mea culpa) e às quais, não entrando na discussão do temário liberdade fatalidade, ninguém foge ou pode fugir. Os ambientes, até mesmo a intriga novelesca, têm um interesse puramente estético, já que o interesse puramente filosófico direi metafísico reside na acuidade com que a morte é proposta à meditação, nas suas mais diferentes formas. A morte acidental, a morte suicida e a morte natural. O escritor propôs uma equação com três incógnitas para as quais o Cristianismo e o Direito Canónico têm leis? Nas novelas onde a morte é provocada por desastre, caso de A Cheia (cujas circunstâncias dramáticas os moradores de uma beira rio vivem ebulitivamente em certas épocas, e disso se aproveita Guedes de Amorim para evidenciar a hediondez da vida) apesar do prenúncio da hecatombe o estado espiritual das pessoas é um estado, não direi religioso. Mas de crença. A morte, se surge, surge como acidente imediatamente imprevisível ou inevitável, e, embora não ocorra no estado teófilo, ocasiona um momento afectivo e direi de quase graça. A morte natural muito mais. A primeira novela, que dá o título ao livro, apresenta o caso de uma hética que pouco definha e morre. Lópinhas, antigo cangalheiro e hóspede de sua mãe, por quem é mal tratado, promete à hética transportar os seus restos na carroça que tantos transportara. A tal ideia se opõe a mãe da doente. A morte da hética é pura, processa se em Deus e essa atmosfera ressalta numa diferença grande com a de A Cheia. Lópinhas, na sua promessa incumprida por oposição de vontades exteriores simboliza o "respeito pelas últimas palavras" que Guedes de Amorim dá a perceber ter por esse acto um respeito qual o que tem pela graça. Na morte por suicídio, ocorrida, a exemplo, em Pastores, o ambiente opõe se às duas novelas citadas e, como não havia de ser assim se até o entrecho se ordena para o desfecho? A violência é condição necessária ao epílogo e este é que guarda em sio problema. Portanto, em novelas várias, intrinsecamente diferentes, embora localizadas em ambientes campesinos, a morte e a ideia da morte são o alvo, o fim, o problema o revelado e o escondido. As ilações que se tiram são que Amorim debateu como homem perante o Homem, o dilema da aniquilação simbolizada no suicídio e da plenitude simbolizada no expirar em graça. Sem dúvida, que Escravos da Morte é uma recolha escatológica na palavra dum artista que, entanto assim, não especulou. Aduziu por circunstâncias estéticas traduzidas e integradas nas novelas ou histórias. Tanto a circunstância serve a finalidade que, em Pastores, num relâmpago, se denuncia a luta social das antecâmaras da indústria de lanifícios. Que eu saiba é a única vez que isso acontece na literatura portuguesa, ao trazer ao de cima, posto que rapidamente, a luta do proletariado agrícola. Mas a luta é a causa, não o resultado. Sempre Guedes de Amorim pretendeu falar do homem enquanto escravo da morte. O estilo não tem o espaço necessário para a compleição e, mesmo assim se ganha e não está longe do estilo de Aldeia das Águias. A fixação num menor número de aspectos a que a novela obriga assim o deve ter causado e tanto mais o causou a um narrador que utilizou uma câmara objectiva, logo mais cinematográfica que prospectiva das profundezas psicológicas, o que não atraiçoou a visão do homem social, económico, gnoseológico e escatológico, que Guedes de Amorim projectou em Escravos da Morte. Que significado tem a morte para Guedes de Amorim e para além da importância existencial? Remembrança, aflição, angústia, medo, visão ou estigma? Observação ou esperiência sentida como ferrete quente em carne fria? Eis as perguntas que, no final da leitura de Os Barcos descem o Rio, me foi dado fazer. Em todas as novelas, no momento apogeico da vida, a morte se levanta como fantasma fatalista que nada pode contrariar, como obstáculo que não importa mais ladear... Mesmo quando os títulos nada sugerem uma história sentida pelo sentido percepciona) e marcada por instintividade comunicativa ou literária mesmo então, digo, é a morte que provoca, desfecha, causifica, efectualiza. Gostaria de poder saber já qual a remota causa de tal presença e muito mais me seria do gosto saber se as máscaras o são só até certo ponto, se não há máscaras, ou, se tudo é devido à imaginação e ao processo inventivo. Os Barcos descem o Rio é um título localizante e mitificaste. Localizante porque aponta um lugar e porque o lugar se define no artigo; marca o no mapa, na ecologia, na sociologia e na dependência e na economia, sintéticamente, na historicidade geográfica. Assim o rio é e a leitura o mostra um ponto imanente numa circunstância. As pessoas e os haveres e os seres relacionam se com o rio e ambos são termos de uma progressão cuja síntese é a vida. A importância mítica advém lhe do facto do rio fazer pensar, de o rio esconder revelando: a vida que flui inerme e indiferente é o indivíduo que corre em procura de tudo. porque a única grande atitude lírica ou épica do homem no mundo é encontrar um Fim e uma razão consentânea com a sua existência: apetência, potência e agência. Guedes de Amorim tem uma especial inclinação para a novela curta, e digo especial para não dizer única na literatura portuguesa contemporânea. Nem a objectiva corre à largura de um vistavision nem à estreiteza de uma fotografia corrente. É o termo intermédio que não larga nem encurta, é a síntese de ambos os processos. Assim um tema breve (emprego a palavra significando tempo, lugar e acção) é analisado sinteticamente por Guedes de Amorim que sempre (até por causa da cronologia) usa a tão sua terceira pessoa mista de subjectividade e de objectividade, de cinematografia e de omnisciência como de resto, na minha opinião, convém a qualquer novela. Sem pretender fazer de mestre gostaria que alguém, a ter de estudar o uso simbólico desses ângulos, o fizesse na obra de Guedes de Amorim, o melhor exemplo, ainda que, repito, na minha opinião. Até o estilo se molda ao modo: nem arrogâncias líricas, nem infrenismos narrativos, nem meditativismos ensaísticos. A novela que dá o título ao livro que provocou estas considerações, assim como outras, a Recoveira, Barquinho de Papel, etc., o exemplificam, integrando a obra numa interrelatividade temática, dir se ia sequente mas que o não é apesar de em pontos vários serem comuns e simultâneos: o amor, a morte, a infância, a pobreza, a cstidade, a obediência, graus que enformam a estrutura ideológica intuitiva das personagens. Daqui, podemos falar na universalidade reflectida no particular. A problemática católica é posta por Guedes de Amorim em pessoas da Beira Douro, figuras populares e históricas do vulgo que servem de meio condutor à ideia reflexa. A bruxa, o mendigo, a mentirosa, são pessoas reais e substanciais em que a sensação da universalidade está presente. Por isso, não quero entrar na discussão de regionalismo e universalismo, porque os dois termos se consubstanciam e interpenetram na obra de Guedes de Amorim que sempre pretendeu evidenciar potências universais em agências particulares. As novelas insertas em Alma sem Medo podem definir se no termo que G. de A. escreve numa das novelas, Vidas na Rampa: "a satisfação de existir"... Gostar de viver, apesar de tudo. Claro que parte de um postulado ético qual o que mande guerrear a adversidade e nela mesma encontrar um motivo de louvor à existência, seja a imanente, seja a transcendente, seja a física, seja a metafísica. Falaria numa refinação essencialista da existência: o homemessência no homem existência. As três novelas do livro estão ordenadas para a demonstração intuitiva do postulado e é verdade que Amorim se vale de plurividências e de pluri observâncias a inscreverem o postulado nessa generalidade que abrange tantos sectores existenciais quantos os possíveis e os verosímeis. Assim é que, circunscritos na província e entre gente de média populidade, as novelas abrangem três sectores dessa populidade: a fome na família para a reivindicação social, a família como ` fons vitae" e a família na esterilidade sacramental. Descrevamos: O entrecho de o último Caminho situa se numa região mineira e num tempo de euforia industrial em que a região agrícola é absorvida pelas entranhas da terra e o lucro sobrevivencial e as pessoas tiraram os solo vão agora buscá lo às viceras da terra. Por isso nasce uma controvérsia entre os constantes e as inovações, por outras palavras, entre o que era e o que se tornou não tem sido. Esse conflito absorve a atenção do escritor que se volta para o conflito social estrito e não para o das massas. A família é, verdadeiramente, o único objecto ferido pelas inovações. O desemprego, a falta de recursos, a fome, a morte e a loucura tomam o devido realce quando Guedes de Amorim parece querer mostrar a morte por causa da fome como a morte mais indigna da condição humana, num julgamento de autêntica potência franciscanista. Franciscanistas são, aliás, as personagens dessas novelas que devem ter sido escritas sob uma forte impressão ditatorial posto que o estilo não revele tal faceta. Desejaria notar que, sendo uma novela de similar contextura neorealista, nela não se emprega, nem em muito nem em pouco, a dialéctica de propriedade socialista, mais facilmente o leitor sendo levado a crer na dialéctica de não propriedade. Vidas na Rampa é uma novela lírica, um modo de ser e de estar. O pai que endoidece com a morte do filho, que renuncia a tudo, e parte pelo mundo fora na campanha de atoleimados peregrinos, tocando violino. A novela é um poema, uma sonata, para lá de quantas implicações sociais espicace em circunstâncias e em diálogos. O adultério, a desagregação familiar, a sevícia desaparecem, da novela ficando, realmente, a fisionomia de uma pessoa no mundo: a fisionomia lírica, por isso, outra vez, a não propriedade. O Moinho Parado é mais complexo. Debruça se sobre a liturgia do sacramento, em especial do matrimónio e da confissão. Tanto num caso como noutro há uma falha, mas esta não se deve à essência do sacramento que à intenção dos sacramentados. Sendo uma novela realista podemos dizer que possui um notável sentido litúrgico como o possui, aliás, grande parte das novelas do escritor que narra na terceira pessoa usual em um estilo que, não tendo a riqueza verbal de outras obras, se adapta à exteriorização convincente das novelas de naturalista virtude cristã, sugerida mas não dogmatizada. Mil novecentos e quarenta cinco é um ano novo na actividade literária de Guedes de Amorim. Catalisada que fora no olvido, a cidade volta a impor se lhe como objecto circunstancial do complemento directo na sua mens artística, social e religiosa, melhor, só artística, pois julgo que Amorim reúne nela, tética e antitèticamente, o homem social e o homem religioso, por redução as grandes vias existenciais. Patamar reúne uma selecção de contos cujos fundos tramáticos me parece recordarem a anterior ou antiga experiência que precedera a vocação de tipos regionais. A afirmação vem de os contos sugerem ambiguamente uma proposição de carácter eminentemente social num realismo zolaesco o qual, criticando o desnudando, não ousa apontar as soluções que não possui. Por isso, julgo serem estes contos, ao menos ideologicamente, um álbum de retratos tirados no período anterior ao golpe sofrido. É o livro seguinte, publicado no ano imediato, que me vem apoiar na suposição por duas razões evidentes: serem novelas de focagem realista a valerem se de pessoas e de ideias só por elas capazes de exporem o caminho iniciado em Aldeia das Águias; e possuírem uma unidade afectiva angeológica concordantemente cega com a linha percorrida desde o citado romance que a Academia premiou. O título da obra, Anjos na Encruzilhada, chega mesmo a propor certos considerandos não tomáveis senão na lembrança de evidente afectividade mais humanitarista que socialista (não dou à palavra o sentido usual), pelo que G. de A. se deixou conquistar totalmente. Que se passa, pois, uma vez que a cidade volta ao escritor? Três coisas julgo viáveis: a necessidade de comunicar uma experiência em termos silogísticos mais universais que os seguidos na primeira fase; a adesão à questão social infantil criada por uma guerra inócua que deixou a Europa aberta aos perigos asiáticos; a visão certeira de que todos os males agem sobretudo nas crianças, mais influenciáveis que os adultos. Desse modo, cada criança é um anjo ofendido a cada passo e, desse modo. também, o escritor atrai a atenção para o facto de só os responsáveis serem pecadores e confessáveis. As crianças são, por excelência, a ignorância inocente. Cada palavra é um símbolo e cada frase um trimegismo de pureza conseguida na quase imitação que G. de A. faz do espírito infantil, descoberto entre ruínas espirituais, ambiente de vícios, mentalidades proletarizadas que em breve virão ao cimo, azorragantes em O Homem da Rua. Eís um romance de experiência ideológica, ou bi ideológica: o proletarismo comunista e caridade renunciativa do catolicismo (dois antípodas) caminham lado a lado numa luta ardente embora manifestada em fugazes e venenosas atitudes até à possibilidade da consecução dos lucros ou das benesses. Ainda aqui, écom solteiros, em pressentidos instintos familiares, que Amorim situa e entrechoca o nó do romance que tem uma função especial: mostrar o fundo através de formas particulares que são as prostitutas, os marinheiros, as crianças, os taberneiros, o social, o económico e o erótico de um bairro que se adivinha ser o Bairro Alto desta Lisboa de "desvairadas gentes". A problemática do romance acentua se na falta de uma luz espiritual, na instintividade que a todos dirige, nos vagos pressentimentos abstractos. G. de A. contrapõe a integral cristã ao carecente materialista. Nisso, para lá do mais, porque o estilo se moldou às precisões da extensão, simplificando se, está o intrínseco valor do romance não de todo alheio às preocupações neo realistas de 40. Estamos ainda no período citadino cosmopolita, voguemos aqui: é constante nos romancistas portugueses a monotonia dos termos romanescos. O tempo, a acção, o lugar nas suas subvalências ou ordens repetiramse nos mesmos escritores. Mesmo o fecundíssimo Camilo, que o foi em quantidade não podemos dizê lo fecundíssimo em temas e em visões inventivas e se o foi não o foi da maneira que tantos metros de livros exigiriam. Guedes de Amorico, de um momento para o outro, salta, varia, ora toca harpa ora zabumba, ora desce ao Douro ora sobe à cidade, ora linguaja como o povo, ora usa o especiosismo citadino. Este juízo desenvolveu se em mím durante a leitura dos contos integrantes de A Cidade e o Sonho. No romance anterior observara um drama ideológico existencial veramente dramático, aqui assisto a várias partes de um extenso drama repartido em compartimentos ordenados e construídos segundo o real quotidiano de privados horários, dramas contados num sorriso que obriga a sorrir, talvez por dó, talvez por ironia, A verdade é que não foi possível olhar as curtas metragens e a maneira como foram captadas, sem um sorriso. Desejo dizer que A Cidade e o Sonho possui certo tónus anedótico que, por ser burlesco, é ironicamente triste. O mendigo que sonha com lautos banquetes, a viúva que venera seu defunto marido no chapéu, o padeiro que barafusta com as dívidas, a menina que sonha com o amor, são pequenos dramas de jornal que assumem dimensões trágicas nos espíritos das personagens, porque, bem observadas as razões, apenas houve uma ocasional frustração de apetências, nada mais. Estes contos mostram como é possível Ter uma obra longa sem ser monótona. Variação, variação que a unidade é complexa e a verdade diversa... Simbolizando temas que Amorim deu nos contos anteriores, as personagens desdobram se na atitude aldeã. Porventura, nelas tiveram raízes as novelas e os contos que integram Caminhos Fechados, onde voltam a aparecer certas figuras e curiosos tipos das obras de circunstância rural. Histórias de ouvir contar, a propósito da família, dos costumes, da mocidade, variações literárias sobre o berço, os carreiros, as heranças, a atracção da cidade, tudo embrulhado em certo tom que, não chegando ao picaresco, com ele tem algumas afinidades. Caminhos fechados iguala destinos é o que a obra traduz, mas o autor não ousa opor se à fatalidade dos acontecimentos quando previamente traçados. E, neste livro, uma coisa ressalta: a preparação tipológica e ambiental do primeiro romance político hístóríco por que Amorim se apaixonou à semelhança de Aníbal Soares ou de Rocha Martins. Casa de Judas, situado nos primeiros anos da nossa centúria, quando lutas intestinas chagavam o país, pretende, subjectivamente, mostrar como não é a cidade quem mais sofre com as lutas políticas. O pobre e, bem assim, a província são os sacrificados, porque facilmente manejados por potências agindo pelo lucro e não pelas ideias. O Douro é o cenário de um crime de política feita de interesses e de lúgubres controvérsias. Quem manda matar? A potência política. Quem mata? Um aldeão. De quantas promessas e de quantos sonhos planeados, a frustração foi o único resultado. E é neste processo que Amorim se revela contra uma política de formas a favor de uma política de Bondade. Moroso seria criticar tal posição que o estilo analítico dissertativo evidencia, com ela evidenciando o espectador não interveniente e supravidente que, neste romance, é Guedes de Amorim. Mais lucraria o escritor em Janelas sobre o Passeio, conjunto de historietas relacionadas intimamente com Caminhos Fechados só que, aí, o escritor prefere a cidade, remoendo e aprofundando memórias antigas encontradas ao longo da sua obra post quarenta. A frustração amorosa, os pobres, os solteirões, os que se negaram ao amor, a caridade, a cidade dos pobres são os temas que Amorim esboça em traços rápidos, de crónica, onde a fala se alia ao desenho, o ouvido à vista. Crónicas da cidade que Amorim muitíssimo bem conhece são os contos de particularidades estéticas afins com tantos outros contos. Por isso me parece serem eles importantes na medida em que são uma contribuição válida para o estudo futuro dos costumes lisboetas do nosso século... E (Nota Embora "Francisco de Assis, Renovador da Humanidade" tenha sido publicado na altura em que o presente ensaio foi escrito, não é neste mesmo ensaio referido. Obra diferente, achei que não devia incluí Ia numa perspectiva somente aberta à obra de ficção de Guedes de Amorim que teve a bondade de apontar o meu nome como um dos melhores críticos do livros sobre S. Francisco. A quem quiser formar juízo mais completo sobre G. de A. facilmente encontrará n' O Debate de 1961 a referida crítica), daqui em diante, a palavra pertence a Guedes de Amorim...
Pinharanda Gomes Lisboa, Janeiro Fevereiro, 1961
In iii volume do Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses,
coordenado por Barroso da Fonte, 656 páginas, Capa dura.
Editora Cidade Berço, Apartado 108 4801-910 Guimarães - Tel/Fax: 253 412 319, e-mail: [email protected]
Pinharanda Gomes Lisboa, Janeiro Fevereiro, 1961
In iii volume do Dicionário dos mais ilustres Trasmontanos e Alto Durienses,
coordenado por Barroso da Fonte, 656 páginas, Capa dura.
Editora Cidade Berço, Apartado 108 4801-910 Guimarães - Tel/Fax: 253 412 319, e-mail: [email protected]